Espaços públicos ociosos: práticas da gestão de áreas públicas em São Paulo

Não é surpresa que a questão fundiária no Brasil seja uma temática complexa. Como define Ermínia Maricato, o “nó da terra” está no centro de diversos conflitos; seja em questão da ocupação produtiva das terras nas áreas rurais, ou no cerne das questões de direito à cidade, habitação e infraestrutura nos centros urbanos. Mas, o que pouco se discute no campo do urbanismo e das políticas públicas urbanas são as relações de causa e efeito do conflito de terras na gestão atual de áreas públicas, principalmente no que diz respeito à organização do patrimônio municipal, e, mais importante, os seus efeitos práticos no desenho da cidade e nas dinâmicas urbanas.

O período colonial impôs relações de posse e propriedade da terra que se enraizaram na sociedade brasileira, de modo a continuar ditando a organização fundiária do país até os dias atuais. Segundo Lígia Maria Osório Silva, as concessões de terra pela metrópole portuguesa no início da colonização tinham como principal objetivo a utilização produtiva da terra. No entanto, não eram acompanhadas de rígida fiscalização e controle por parte da metrópole, o que ocasionou na formação de grandes latifúndios improdutivos, e, a longo prazo, resultou na manutenção deste padrão de ocupação. Com a mudança de regime político e o estabelecimento da República, a falta de controle e documentação das terras públicas continuou a ser o modus operandi vigente, gerando reflexos alarmantes na desorganização do patrimônio imobiliário contemporâneo. 

A negligência histórica das autoridades para com o patrimônio público causou, para além de problemas técnicos na gestão fundiária, um apagamento político da discussão sobre a importância da documentação e da utilização social da terra pública, deixando-a em segundo plano nas agendas de governo atuais. 

O tema sobre as áreas públicas é, ainda, de pouco conhecimento dos poderes públicos ou é tratado com pouca acuidade. Se esse tema mal é incorporado na elaboração das políticas sociais, urbanas e habitacionais das cidades brasileiras, é ainda menor o grau de conhecimento da população sobre ele. E, quando é tratado pela mídia, ele é rapidamente abafado ou superficialmente tratado. Por que não desvendar a realidade das áreas públicas nas cidades brasileiras, como as da cidade de São Paulo por exemplo? — MOREIRA, 2008

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Espaço público gradeado. Bom Retiro, São Paulo, 2020. Autoria própria

Em 2016, a prefeitura de São Paulo publicou no mapa digital da cidade (Geosampa) a camada “Cadastro de Áreas Públicas”, apresentando um total de 3.057 áreas públicas municipais georreferenciadas. Fato um tanto estranho, uma vez que, à primeira leitura, aparenta indicar que uma das maiores cidades da América Latina possui um patrimônio fundiário bastante reduzido.

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Mapa Áreas Públicas Cadastradas. Autoria própria. Dados: CGPATRI/SMG, 2016

A camada publicada foi fruto da tentativa de implementação do Plano de Gestão de Áreas Públicas (PGAP), que havia sido proposto no Plano Diretor de 2002, mas só foi executado com a elaboração do novo plano, em 2014. O desenvolvimento do PGAP aconteceu no segundo biênio da gestão Haddad, entre os anos de 2015 e 2016, com o objetivo de organizar, digitalizar e publicizar o acervo de áreas públicas da prefeitura de São Paulo. No entanto, uma série de gargalos impediu que o plano fosse implementado em sua totalidade. 

O primeiro deles era a condição do acervo. As áreas públicas municipais estão cadastradas manualmente - em fichas de papel, com croquis desenhados à mão -, e são separadas em acervos por origem jurídica, ao invés de estarem arquivadas de acordo com suas características físicas e territoriais. Na prática, isso significa que uma praça que antes era privada e foi cedida para a Prefeitura está cadastrada junto das outras outras áreas cedidas, ao invés de ser arquivada com as outras praças públicas da cidade. Para além disso, o cadastramento das áreas raramente inclui informações sobre seu estado de uso - se estão ocupadas ou ociosas. Estes fatores dificultam não só a reorganização dos acervos proposta pelo PGAP, como também tornam a leitura territorial do patrimônio público extremamente desafiadora.

Um segundo gargalo na implementação do Plano de Gestão de Áreas Públicas é a falta de diálogo intersecretarial, que complexifica a unificação das informações existentes acerca das áreas públicas municipais. Fica sob responsabilidade de cada Secretaria administrar as áreas públicas a ela cedida, podendo também tredestiná-las (redestinar a área a outro órgão ou entidade). No entanto, não havia uma comunicação institucionalizada entre as Secretarias e o Departamento de Gestão do Patrimônio Imobiliário (DGPI), órgão responsável por reunir as informações sobre todas as áreas públicas municipais na época da elaboração do Plano. Deste modo, as informações ficam dissipadas, e o esforço de reuní-las e organizá-las em um só acervo dependia de uma grande articulação e diálogo entre todas as Secretarias e o DGPI. 

Um último fator, e talvez o mais determinante para o fracasso da implementação do Plano de Gestão de Áreas Públicas, é a descontinuidade de gestão. O projeto do cadastramento digital começou apenas um ano antes do fim da gestão Haddad. Frente à situação caótica dos acervos e à dissipação de informações oriunda da falta de diálogo intersecretarial, a equipe envolvida não teve tempo hábil de cadastrar digitalmente todas as áreas públicas previstas no Plano. Entretanto, mesmo que incompleta, a camada foi publicada no mapa digital da cidade, pela ameaça de descontinuidade do projeto com a troca de gestão.

E então, qual é a real dimensão do patrimônio da prefeitura? De acordo com o número de processos e fichas cadastrais que estão arquivadas no DGPI, é possível estimar, em primeiro momento, um total aproximado de 35.000 áreas públicas municipais. Entretanto, ao analisar a situação da camada publicada no Geosampa, esta estimativa torna-se questionável.

Das 3.057 áreas públicas georreferenciadas, apenas 277 delas têm suas características territoriais definidas, o que em si é extremamente preocupante, uma vez que as outras 2.780 áreas foram cadastradas sem nenhuma especificação de sua forma, uso ou situação.

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Mapa e gráficos das Áreas Públicas Cadastradas com e sem características territoriais definidas. Autoria própria. Dados: CGPATRI/SMG, 2016

Por meio de um estudo de caso focado nas áreas públicas sem características definidas na Zona Central da cidade, descobriu-se que dentro de uma amostragem de 157 áreas, 75 delas eram repetições do mesmo território. Mas como explicar este fato? Possivelmente o terreno em questão se tratava de uma propriedade compartilhada, e, uma vez desapropriado, gerou-se um processo distinto por proprietário, cada um deles cadastrado como uma área pública no mapa digital da cidade.

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Mapa de categorização das características territoriais das áreas públicas cadastradas na Zona Central da cidade, realizado a partir da metodologia desenvolvida no trabalho de conclusão de curso. Autoria própria
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Gráfico das características territoriais das 164 áreas públicas cadastradas na Zona Central da cidade sem verificação da repetição de shapefiles. Elaborado a partir de metodologia desenvolvida no trabalho de conclusão de curso. Autoria própria
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Gráfico das características territoriais das áreas públicas cadastradas na Zona Central da cidade desconsiderando os shapes repetidos. Elaborado a partir de metodologia desenvolvida no trabalho de conclusão de curso. Autoria própria

Esta situação ilustra os reflexos negativos do cadastramento por origem jurídica mencionados anteriormente. Para além da leitura territorial das áreas públicas ser desafiadora, há uma grande dificuldade em efetivamente territorializá-las no mapa. Tendo essa realidade em vista, torna-se impossível estimar a real dimensão do patrimônio público municipal sem realizar a análise de cada um dos processos e fichas cadastrais do departamento.

Para além de exemplificar a extensão do “nó da terra” na gestão pública, este cenário também demonstra uma faceta de seus efeitos práticos no desenho da cidade e nas dinâmicas urbanas. A desorganização do acervo de áreas públicas, o desconhecimento sobre a extensão do patrimônio municipal e a falta de publicização da situação atual do acervo são obstáculos para o cumprimento da real função das áreas públicas - o seu uso público e social.

A terra pública é indispensável tanto para o funcionamento institucional do Estado quanto para a execução das diferentes políticas urbanas e sociais, uma vez que é o suporte territorial para a implantação de equipamentos ou para a realização de obras de infraestrutura. Assim como todas as atividades estatais, deve se submeter ao interesse público e coletivo. — SANTORO, UNGARETTI, MENDONÇA, 2018

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Praça Marechal Deodoro, 2020. Autoria própria

Deste modo, espaços públicos ociosos com potencial para abrigar projetos urbanos permanecem desconhecidos, descumprindo sua função social, enquanto a cidade carece de espaços públicos de qualidade. Cabe a nós, arquitetos e urbanistas, e aos outros atores produtores de cidade reivindicar que o patrimônio público seja devidamente organizado e publicizado, para que a terra pública cumpra o seu papel social, promovendo um desenvolvimento urbano social, democrático e inclusivo.

Referências Bibliográficas
MARICATO, Ermínia. O nó da terra. Piauí, São Paulo, v. 2, n. ju 2008, p. 34-35, 2008.
MOREIRA, Tomás. Áreas públicas: fontes de destinação social ou privada. Referências às novas políticas habitacionais brasileiras. Revista Oculum Ensaios, ISSNe 2318-0919. Campinas, 2008
SILVA, L. M. O, SECRETO, M. V. Terras públicas, ocupação privada: elementos para a história comparada da apropriação territorial na Argentina e no Brasil.Economia e Sociedade, Campinas, (12): 109-41, jun. 1999. 
SANTORO, P. F. UNGARETTI, D.; MENDONÇA, H. R. P. ‘Destravar’ terra pública no processo de financeirização: o caso de São Paulo. Seminário internacional - Financeirização e Estudos Urbanos: Olhares cruzados Europa e América Latina. IAU-USP São Carlos. ISBN 978-85-66624-19-9, 2018.

O ensaio aqui exposto é um desdobramento do trabalho de conclusão de curso da graduação de Arquitetura e Urbanismo da Escola da Cidade, “Espaços públicos ociosos e as implicações práticas da gestão de áreas públicas em São Paulo”, desenvolvido pela autora sob orientação da professora Dra. Carolina Heldt D’Almeida.

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Sobre este autor
Cita: Amanda Silber. "Espaços públicos ociosos: práticas da gestão de áreas públicas em São Paulo " 10 Out 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/969692/espacos-publicos-ociosos-praticas-da-gestao-de-areas-publicas-em-sao-paulo> ISSN 0719-8906

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